sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A Arte de Ouvir


Certa vez fiquei responsável de fazer uma dinâmica com os colegas de trabalho. Na época achei apropriado a leitura de um texto reservando um espaço para uma breve bate-papo, bem informal. beleza, aconteceu como planejado, porém durante a leitura do texto me surpreendi quando vi algumas pessoas chorando... caramba - pensei eu - o texto mexeu com as pessoas, mexeu comigo também à primeira vez que o li. Na conclusão da vivência com os colegas pedi para eles fecharem os olhos e toquei no clarinete "Meditação" do Tom Jobim, que recomendo ouvirem depois da leitura. Então como agora estamos concluindo um ciclo e começando outro, nada melhor que uma reflexão, uma meditação. Então ouçam Rubem Alves:


A Arte de Ouvir

De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor sagrado: “No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era o silêncio.” É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve. Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam, sim. Para ouvir as vozes do silêncio. Veja esse poema de Fernando Pessoa, dirigido a um poeta: “Cessa o teu canto! Cessa, que, enquanto o ouvi, ouvia uma outra voz como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto vinha até nós. Ouvi-te e ouvia-a no mesmo tempo e diferentes, juntas a cantar. E a melodia que não havia se agora a lembro, faz-me chorar...” A magia do poema não está nas palavras do poeta. Está nos interstícios silenciosos que há entre as suas palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não havia. Aí a magia acontece: a melodia me faz chorar.

Não nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa para por não haver o que dizer tratamos logo de falar qualquer coisa, para por um fim no silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro? Ou olhamos para o chão? Nada temos a falar. Esse silêncio, é como se fosse uma ofensa. Aí falamos sobre o tempo. Mas nós dois bem sabemos que se trata de uma farsa para encher o tempo até que o elevador pare.

Os orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano o nome do filme é “Aconteceu em Tóquio”. Duas velhinhas se visitavam. Por horas ficavam juntas, sem dizer uma única palavra. Nada diziam porque no seu silêncio morava um mundo. Faziam silêncio não por não ter nada a dizer, mas porque o que tinham a dizer não cabia em palavras. A filosofia ocidental é obcecada pela questão do Ser. A filosofia oriental, pela questão do Vazio, do Nada. É no Vazio da jarra que se colocam flores.

O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A prática educativa tradicional se inicia com a palavra do professor. A menininha, Andréa, voltava do seu primeiro dia na creche. “Como é a professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: “Ela grita...” Não bastava que a professora falasse. Ela gritava. Não me lembro de que minha primeira professora, Da. Clotilde, tivesse jamais gritado. Mas me lembro dos gritos esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o espaço de medo. Na escola a violência começa com estupros verbais.

Milan Kundera conta a estória de Tamina, uma garçonete. “Todo mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo? Não sei... O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas falam. Uma fala e outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e começa a falar de si até que a primeira consiga por sua vez cortar: ‘é exatamente como eu, eu...’Essa frase ‘é exatamente como eu...’ parece ser uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engodo. É uma revolta brutal contra uma violência brutal: um esforço para libertar o nosso ouvido da escravidão e ocupar à força o ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem entre os seus semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do outro...”

Será que era isso que acontecia na escola tradicional? O professor se apossando do ouvido do aluno ( pois não é essa a sua missão?), penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a força da autoridade e a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido silencioso do aluno há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a razão porque há tantos cursos de oratória, procurados por políticos e executivos, mas não haja cursos de escutarória. Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.

Todo mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os adultos procuram um psicanalista, profissional pago do escutar.) Toda criança também quer ser escutada. Encontrei, na revista pedagógica italiana “Cem Mondialità” a sugestão de que, antes de se iniciarem as atividades de ensino e aprendizagem, os professores se dedicassem por semanas, talvez meses, a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio das crianças há um programa de vida: sonhos. É dos sonhos que nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças para que a sua inteligência desabroche.

Sugiro então aos professores que, ao lado da sua justa preocupação com o falar claro, tenham também uma justa preocupação com o escutar claro. Amamos não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar...

Rubem Alves


Meditem e comentem...

4 comentários:

  1. É isso aí... Um belo texto e um belo vídeo! É justamente disso que precisamos: saber ouvir. Infelizmente a maioria de nós ainda não aprendeu essa grande virtude.
    Um grande abraço e um ótimo domingo!

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  2. Oi amigo....será que eu estava presente nessa dinâmica? Mesmo não estando, eu li o texto acima e o silêncio se fez, para enfim, o verbo nascer: OUVIR. O vídeo é maravilhoso.
    FELIZ 2011!! TUDO DE BOM. BJS.

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  3. Amigo Adinalzir, gosto de lhe ouvir e lhe ver por aqui, sempre uma honra, muito grato por tudo. Feliz Ano Novo pro senhor!

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  4. Queria da Julita sempre bom te ver, quanto estiveres em Belém, mande um sinal de fumaça! Bom ano pra ti e pra sua filhota!

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