quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Ideia para discutir criatividade em sala de aula

O texto a seguir foi retirado do livro Filosofando, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins. Transcrevi e posto quase na íntegra o capítulo Criatividade por acreditar na contribuição do texto para reflexão e até mesmo como proposta de atividade. As possibilidades são muitas.

Nesse estudo acima, para seu famoso quadro Antropofagia (1929, a pintora modernista brasileira Tarsila do Amaral,escolhe elementos que entrarão em sua composição e que, depois, serão retrabalhados em função de seu melhor aproveitamento do ponto de vista da forma pictórica. É sempre interessante poder acompanhar a evolução de uma idéia artística.

Antes da discussão dos conceitos, sugerimos a seguinte atividade para se feita em grupo: tracem, em uma folha de papel, 24 círculos de aproximadamente, cinco centímetros de diâmetro e desenhem livremente em seu interior o que quiserem, durante quinze minutos. Em seguida, façam um levantamento de todos os desenhos e apresentem para o grupo os mais comuns e os mais incomuns. A partir disso, discutam o que é criatividade.


Criatividade

Quando começamos a discutir sobre criatividade, parece sempre que ingressamos num universo um tanto mágico, habitado por deuses, seres que possuem o dom da criatividade, geralmente na área das artes, que é negado ao comum dos mortais. Chamamos de criativas as pessoas que sabem desenhar, tocam algum instrumento, têm alguma habilidade manual “especial”, como pintar camisetas ou ser bom marceneiro; enfim, as que sabem fazer coisas que a maioria das pessoas não sabe.
Será que basta habilidade técnica para ser criativo? Ou será que a criatividade envolve processos mais complexos?

Vamos começar a discutir esse assunto partindo de alguns significados da palavra criar e de seus derivados criador, criatividade e criativo que constam no dicionário:

Criar. V. t. d. 1. Dar existência a; tirar do nada. 2. Dar origem a; gerar, formar. 3. Dar princípio a; produzir, inventar, imaginar, suscitar.
Criador. Adj. 3. Inventivo, fecundo, criativo.
Criatividade. S. f. 1. Qualidade de criativo
Criativo. Adj. Criador

Podemos ver nesses vocábulos que a criatividade pressupõe um sujeito criador, isto é, uma pessoa inventiva que produz e dá existência a algum produto que não existia anteriormente. Vemos também que imaginar é uma forma de inventar ou criar um produto. Portanto, esse produto da atividade criativa de um sujeito não é, necessariamente, um objeto palpável, mas pode ser uma idéia, uma imagem, uma teoria.


Criatividade como capacidade humana

Levando em conta essa discussão, percebemos que a criatividade é uma capacidade humana que não fica nada confinada no território das artes, mas que também é necessária à ciência e à vida em geral. A ciência não poderia progredir se alguns espíritos mais criativos não tivessem percebido relações entre fatos aparentemente desconexos, se não tivessem testado essas suas hipóteses e chegado a novas teorias explicativas dos fenômenos.


A imaginação

O processo de trabalho do cientista aproxima-se do processo de trabalho do artista. Ambos desenvolvem um tipo de comportamento denominado “exploratório”, isto é, dedicam-se a “explorar” as possibilidades, “o que poderia ser”, em vez de se deter no que realmente é. Para isso, necessitam da imaginação. Assim, um dos sentidos de criar é imaginar. Imaginar é a capacidade de ver além do imediato, do que é, de criar possibilidades novas. É responder à pergunta: “se não fosse assim como deveria ser?”.

Se dermos asas à imaginação, se deixarmos de lado o nosso senso ridículo, se abandonarmos as amarras lógicas da realidade, veremos que somos capazes de encontrar muitas respostas para a pergunta. Este é o chamado pensamento divergente, que leva muitas respostas possíveis. É o contrário do pensamento convergente, que leva a uma única resposta, considerada certa. Por exemplo, à pergunta “”Quem descobriu o Brasil, só há uma resposta certa: Pedro Álvares Cabral. Para a pergunta “Se os portugueses não tivessem descoberto o Brasil, como estaríamos hoje?”, há inúmeras respostas possíveis. A primeira envolve memória; a segunda, imaginação.

Tanto o artista quanto o cientista têm de ser suficientemente flexíveis para sair do seguro, do conhecido, do imediato, e assumir os riscos ao propor o novo, o possível.

A inspiração


Nesse contexto, qual seria o lugar da tão falada inspiração? Na verdade, a inspiração é resultado de um processo de fusão de idéias efetuado no nosso subconsciente. Diante de um problema, de uma preocupação ou ainda de uma situação, obtidas as informações fundamentais acerca do assunto, o nosso subconsciente passa a lidar com esses dados, fazendo elementos. É como tentar montar um quebra-cabeças: experimentemos ora uma peça, ora outra, até acharmos a adequada. É o momento em que a imaginação é ativada para propor todas as possibilidades, por mais inverossímeis que sejam. Desse jogo subconsciente surgirão em nossa consciência sínteses e novas configurações dos dados sobre as quais trabalhará nosso intelecto, pesando-as, julgando-as, adequando-as ao problema ou à situação. Ao surgimento dessas sínteses em nossa consciência damos o nome de inspiração. Tanto o artista quanto o cientista trabalham intelectualmente a inspiração. O artista tem de decidir entre materiais, técnicas e estilos para a produção da sua obra. O cientista tem de elaborar e testar as suas hipóteses para chegar a uma teoria ou produto novos.

Vimos no início da postagem o projeto deste quadro (Antropofagia), antes do pictórico colorido impresso de forma magistral por Tarsila do Amaral

Podemos a partir da discussão com os alunos, pedir que desenvolvam com suas palavras, as seguintes questões:

1. Qual o papel da imaginação no ato de criar?
2. O que é imaginação?
3. O que é inspiração?
4. No texto, identifique semelhanças entre o artista e o cientista.


Vamos criar!

E comentar também...

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Ver o som, ouvir imagens: considerações sobre conceitos de paisagens sonoras

A paisagem sonora mundial é uma composição indeterminada, sobre a qual não temos controle, ou seremos nós, os seus compositores ou executantes, encarregados de dar-lhe forma e beleza?
Murray Schafer

Minha intenção aqui é concluir melhor não só o termo, mas o que move e como funciona uma paisagem sonora de um lugar. Neste sentido continuarei a trabalhar não só com o “inventor” do termo e do estudo Murray Schafer, mas também com alguns outros autores, inclusive brasileiros que também trataram do assunto, que de certo modo ainda é novo, ou agora está de certa forma, na vitrine das pesquisas em música, sendo assim, necessário um breve histórico.

No final da década de 60, pesquisadores da Simon Fraser University no Canadá, liderados por Murray Schafer começaram as primeiras pesquisas de paisagens sonoras e ecologia sonora formando assim o World Soundscape Project (WSP), tendo como principal finalidade estudar o meio ambiente sonoro.

Grupo WSP - M. Schafer, Jean Reed, Bruce Davis, Peter Huse, Howard Broomfield http://www.nicis.unicamp.br/nicsnews/002/reportagem.php)


Conhecido como um “filósofo musical”, John Cage, já fazia experiências sonoras na década de 50, provocando os ouvintes a escutar o silêncio, como na obra 3’:43’’, sentindo os ruídos espontâneos nos ambientes pois diz que “Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de salas de concerto”. Os compositores à época interessaram-se em criar a partir do intervencionismo da rua, interessam-se pela polifonia urbana, pelos sons da cidade em suas obras. É possível estabelecer através Schafer, uma reflexão ainda mais profunda quanto “aos sons” a qual Cage se refere e que como estes “sons” tornaram-se possibilidades musicais ao longo do tempo:

Definir música meramente como “sons” teria sido impensável há poucos anos atrás, mas hoje são as definições mais restritas que estão se revelando inaceitáveis. Pouco a pouco, no decorrer do século XX, todas as definições convencionais de música vêm sendo desacreditadas pelas abundantes atividades dos próprios músicos. (SCHAFER, 1991: 120)

Na verdade, é inegável que Schafer é o principal pesquisador das paisagens sonoras do mundo, apontando-nos caminhos para entendermos as sonoridades ao nosso redor: “O que o analista da paisagem sonora precisa fazer, em primeiro lugar, é descobrir os seus aspectos significativos, aqueles sons que são importantes por causa da sua individualidade, quantidade ou preponderância” (2001, p. 25).


Grupo WSP na Simon Fraser University, em 1973
http://www.nicis.unicamp.br/nicsnews/002/reportagem.php)

O pesquisador Murray Schafer se dedicou a estudar as paisagens sonoras para a composição musical e se tornou um crítico da poluição sonora da sociedade industrializada. Hoje ele vive no campo em Ontario. O remanescente do WSP que continua na Simon Fraser University é Barry Truax. Ele faz pesquisas sobre comunicação acústica e composição eletroacústica. Truax é especialista em síntese de música computacional.

Com os novos meios de comunicação, da Internet, da eletrônica e o desenvolvimento da tecnologia dos computadores, existe uma nova comunidade de músicos, cientistas e engenheiros que estão trabalhando com novos conceitos de ambientes sonoros. O campo da ecologia sonora também atinge vários setores, multidisciplinarmente, com estudos nas áreas de ciências, geografia, história, tecnologia, entre outras. "A idéia central da ecologia sonora pode trazer benefícios a uma sociedade sob o impacto da tecnologia", afirma Truax.

Entre os brasileiros que se propuseram a estudar as paisagens sonoras utilizando as obras de Schafer e, tendo em vista que a tradução do livro “O Ouvido Pensante” feita brilhantemente por Marisa Trench Fonterrada, só aconteceu em 1991, o que evidencia que os estudos de paisagens sonoras no Brasil ainda são recentes. Daí também a explicação do porquê de poucos pesquisadores brasileiros terem se dedicado aos estudos de paisagem sonora e ecologia sonora. Destaco os que considero mais relevantes até o momento: O pesquisador André Luiz Gonçalves de Oliveira, que em sua tese de mestrado na Unesp, dedicou vários capítulos para as análises sobre ciência da ecologia acústica; Em outra tese de mestrado, na PUC de São Paulo, a pesquisadora Fátima Carneiro dos Santos analisa os sons da rua e as suas diferentes possibilidades de percepções, através de gravação feitas em centros urbanos.
André Oliveira propõe “entender o ouvido como parte de um sistema perceptual faz toda a diferença para o estudo da percepção” entendendo ainda que “estudo da percepção visa desenvolver novas propostas poéticas que privilegiem o papel da percepção na ação composicional.”

Este conceito do sistema de percepção, segundo Oliveira, é diferente da noção de órgão sensorial que recebe passivamente as informações para serem codificadas, mas sim como um resultado de detecção, seleção e identificação das mensagens recebidas do meio ambiente. O trabalho de André Luiz Gonçalves de Oliveira (UNOESTE) e também Rael Bertarelli Gimenes Toffolo (UEM) no que tange as relações dos aspectos da abordagem ecológica dos padrões sonoros, sé de fundamental importância para minha pesquisa, pois apontam caminhos seguros de reflexão quanto à aplicação destes aspectos na composição musical, no desenvolvimento de suas técnicas e procedimentos.

Já no trabalho de Fátima Carneiro dos Santos, a autora se propõe conhecer a “música urbana”. Sua dissertação em comunicação e Semiótica na PUC de São Paulo foi publicada no livro “Por uma escuta nômade: A música dos sons da rua” no qual, faz uma análise sobre o som gravado em três centros urbanos, que está em um cd que acompanha o livro. A primeira gravação foi feita na Avenida Paulista em São Paulo, a segunda no centro de Londrina no Paraná e a última na praça central da cidade de Patos, em Minas Gerais.

Considero também o trabalho de Fátima importante para o desenvolvimento de minha pesquisa, no sentido de que a autora apresenta exercícios de escutas, filtrando as ondas sonoras das gravações, ressaltando as diferenças de intensidade e jogos de panorâmicas, transformando em sons estéreos e remixando as faixas. O interessante é que Santos apresenta outra possibilidade da escuta da paisagem sonora, através de filtros que se baseiam na estrutura formal da voz, aproximando os sons da paisagem sonora com sons musicais, convidando-nos em seu trabalho, a perceber os múltiplos sons das paisagens sonoras urbanas: "O exercício de escutar a paisagem sonora a partir de uma ‘escuta nômade’ possibilita o desenvolvimento de uma escuta que compõe, que inventa: uma escuta que percorre diferentes caminhos, despropositadamente, desvelando a todo o momento escutas possíveis, que escapam àquelas predeterminadas pelo hábito", escreve Fátima.

Quanto à Belém, encontramos também dois trabalhos que auxiliaram quando queremos entender a paisagem sonora da nossa cidade. Na pesquisa de MORAES (2003) encontrei descrições de paisagens sonoras com detalhamento das fontes de ruído encontradas em Belém que são basicamente as mesmas até hoje:

Na área em estudo, assim como em qualquer centro urbano das grandes cidades, o tráfego rodado, gerado por veículos motorizados terrestres, exerce grande influência no agravamento da poluição sonora. Entretanto, o ruído gerado pela própria comunidade é, também,
significativo. O uso de alto-falantes, megafones e carros-som são constantes na área. Na tentativa de atrair clientes, acabam concorrendo com o ruído do tráfego de veículos e entre si. Existe uma rádio comunitária no local, que conta com vários alto-falantes, instalados nos postes públicos, usada como principal elemento de informação, propaganda e publicidade. Vale ressaltar que além das atividades comuns a comunidade local é grande geradora de ruído, o que desfavorece a comunicação oral em toda a zona, obrigando o aumento da intensidade vocal, gerando assim grau de incômodo bastante considerado, contribuindo, significativamente, para a poluição sonora. (p.1)


Mais especificamente quanto à paisagem sonora da cidade encontrei em ARRAES (2005) algumas passagens que descrevem alguns exemplos dos sons encontrados na cidade, ontem e hoje:

O memorial sonoro da cidade de Belém é muito rico e criativo. Algumas fontes sonoras somente aqui existiram ou existem até hoje. A cidade por estar dentro da floresta amazônica e cercada por rios, igarapés e espelhada numa baia, tem nas lendas e mistérios da floresta um forte componente sonoro. A proximidade da mata faz com que as pessoas tenham muita intimidade com diversos animais e seus sons. Mesmo na atualidade, onde a urbanização aponta para a globalização dos costumes e uso dos espaços, o povo guarda na relação com a natureza e seus atores uma relação única. (p. 36)

As festas de rua usam equipamentos de som de alta potência, popularmente chamados de “aparelhagem” que tocam músicas para diversão de muitas pessoas que freqüentam estes eventos. O repertório escolhido é de varias nacionalidades e feito para diversos tipos de dança popular. As músicas escolhidas têm a funcionalidade principal de acompanhar a dança dos casais que estão no ambiente. O volume de som é tão alto que alcança centenas de metros além do espaço autorizado para a festa. (Ibid. p. 43)

Quanto maior a abrangência, penso eu, dos estudos de paisagem sonora, mais abrangente será a capacidade do homem contemporâneo encontrar a paz.

sábado, 23 de janeiro de 2010

VER-O-PESO: ESPAÇO, LUGAR E COTIDIANO



"O espaço não é o meio (real ou lógico) onde se dispõem as coisas, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível." Merleau-Ponty

O Ver-O-Peso é um mercado às margens da baía do Guajará construído em 1625, seu nome faz jus às chamadas “Casas do ver-o-peso ” projetadas no Brasil, em 1614 com o objetivo de conferir o peso exato das mercadorias e cobrar os respectivos impostos para a coroa portuguesa. Em Belém, esse “espaço” inclui dois mercados: um de peixe e um de carne e uma feira a céu aberto considerada a maior da América Latina. Adistribui-se ao todo em 25 mil metros quadrados, incluindo um complexo arquitetônico e paisagístico formado construções históricas, como por exemplo a Ladeira do Castelo e seus casarões antigos, a praça do relógio, o forte do castelo, hoje forte do presépio, mercado de ferro, solar da beira além da riqueza humana, imaterial que é inestimável.

Precisamos antes, entender, mesmo que de forma superficial o que é o Complexo do Ver-O-Peso (denominação mais recente), ou simplesmente Ver-O-Peso, como é popularmente conhecido. Cabe então neste processo, destrinchar inicialmente o termo complexo. No dicionário Aurélio é possível encontrar algumas respostas: 1) Que abrange ou encerra muitos elementos ou partes; 2) Observável sob diferentes aspectos; 3) Confuso, complicado, intrincado.

Todas as significações encontradas no dicionário são extremamente relevantes quanto ao que representa e quanto ao que é o Complexo do Ver-O-Peso, o todo, o complexo arquitetônico que é intrincado como vimos, também observável sob diferentes aspectos, sobretudo por ser divido em partes, ou como chamo, “os lugares” do Ver-O-Peso. Surge então a necessidade de identificarmos como são estes lugares e como são os espaços, reconhecendo as diferenças e semelhanaças entre lugar e espaço. Existem autores que consideram lugar e espaço “inseparáveis” e outros, como coisas dinstintas. Merleau Ponty entendia lugar e espaço como coisas distintas, o que delimita um campo, determinado pela experiência e relação com o mundo; no sonho e na percepção. A perpesctiva então é determinada por uma “fenomenologia” do existir no mundo.

Também Michel de Certeau (2008), “aprimorando” as idéias de Merleau-Ponty, nos aponta tal diferença, afirmando que um lugar é como uma configuração instantânea de posição, implica uma indicação de estabilidade e o espaço é um lugar praticado sendo que incessantemente os “habitantes” estão a todo instante tranformando lugares em espaços e espaços em lugares, já que são “inseparáveis” como afirma Tuan (1983): “O espaço e o lugar são inseparáveis porque ambos se configuram, neste caso, como fenômenos humanos. Portanto, desempenham importante papel na conformação das paisagens”. É aí que faço um paralelo com meu tema, pois todos os eventos que acontecem no Ver-O-Peso, sejam eles antropológicos, imagéticos ou sonoros, só acontecem devido a quantidade de pessoas que por lá circulam.
Michel de Certeau diz que as paisagens surgem como espaços privilegiados onde o processo histórico se efetua enquanto devir humano no tempo. Nos termos Certeau (2008) seria um “lugar praticado” no qual os homens atuam cotidianamente. Isto é, entre espaço e lugar, Certeau coloca uma distinção, que delimitará um campo:

Um lugar é uma ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha portanto excluída a possibilidade, pra duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do “próprio: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto que define. (CERTEAU, 2008: 201)

O espaço é o cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. (Ibid. p. 202)


Refletindo sobre essa distinção, elaboro algumas interrogações sobre o espaço para uma comparação/reflexão de acordo com as ideias tratadas até aqui com a realidade do Ver-O-Peso. Que relação os trabalhadores, freqüentadores e passantes do Ver-O-Peso têm com este lugar? A que vínculos sociais estão ligados? Que possibilidades podem experimentar na relação com o lugar?
Por trás do sentimento de ligação entre um povo e sua cidade, o povo e seu lugar, espaço onde o mundo social não só acontece, mas é determinado por ele, pois é nessa relação entre espaço e sociabilidade que torna-se possível pertencer, determinado pelo lugar, onde as coisas se tornam possíveis. SILVEIRA (2009) parece complementar as idéias até aqui discutidas e vai um pouco além revelando-nos que:

Os significados atribuídos aos lugares revelam vínculos simbólico-afetivos que podem estar relacionados com a ordem do sagrado (dados na relação entre o divino natural e o divino social), práticas econômicas ligadas a certos arranjos técnico-culturais (administrando e manejando coletivamente o ambiente), bem como às formas de sociabilidade, dentre as quais o lúdico e a contemplação refletiriam, simbolicamente, a possibilidade de experimentar esteticamente a relação com o lugar. (p. 77-78)
Daí para situar-nos sobre o cotidiano do Ver-O-Peso, a idéia de cotidiano conforme Certeau (2008) é fundamental para compreender meu campo e consequentemente, meu processo de criação:
"O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase que retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta “não-história, como diz ainda A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível...”

O estudo do cotidiano ainda é muito recente, a academia por anos desprezou a vida cotidiana, SOUZA (2000) cita autores de diferentes vertentes do cotidiano:

O campo da sociologia da vida cotidiana é recente e possui origens diferentes. Alguns autores o identificam como um espaço da pós-modernidade (Featherstone 1995), do pluralismo, do abandono às narrativas totalizantes. Para Tedesco (1999) há um revalorizar do interesse sociológico pela vida cotidiana mediado pelo senso comum, talvez como forma de respostas, de esperança no homem e não na história, frente às falsas promessas de redenção de liberdade e de igualdade nunca realizadas. (p.18)

Agnes Heller escreve que “a vida cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no ‘centro’ do acontecer histórico: é a verdadeira ‘essência’ da substância social”. Para tornar esta idéia mais clara, Heller argumenta que “as grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam”. Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e histórica precisamente graças a seu posterior efeito na cotidianidade:

“As grandes ações não-cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam. Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e histórica concreta torna-se particular e histórica precisamente graças a seu efeito na cotidianidade. O que se assimila a cotidianidade de sua época assimila também, com isso, o passado da humanidade, embora tal assimilação possa não ser consciente, mas apenas em si” (apud, SOUZA 2000: 26)


Aqui vemos dois momentos de cotidiano no Ver-O-Peso:



Trabalhadores da “Pedra” e seu entorno sonoro
(Arquivo Pessoal)

Trabalhadores da feira do Açaí

Viva o Ver-O-Peso! Viva Belém do Pará! 394 anos de imagens e sonoridades!